A busca incessante dos pacientes por tal medicamento está baseada em ciência ou na fé (cura milagrosa)?
Qual a evidência científica que apoia o uso da Fosfoetanolamina?
Se tantas pessoas usaram este medicamento, por que os pesquisadores envolvidos nunca publicaram ao menos alguns relatos de casos ou série de casos para que se pudesse chegar a alguma conclusão, e não ficarmos dependentes de depoimentos de terceiros??? Será que é assim que se faz ciência???
Vamos aos fatos:
O registro de medicamentos no Brasil segue o disposto na Lei Federal
nº. 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a
que ficam sujeitos os medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância
sanitária.
A Lei nº. 5.991/1973
prescreve que medicamento é todo produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou
elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de
diagnóstico. Assim, qualquer produto que possuir alegações terapêuticas, deve
ser considerado medicamento e precisa de registro para ser fabricado e
comercializado.
Desde 1999, com a criação
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com competências
estabelecidas por meio da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, essa
atividade tornou-se responsabilidade da Agência.
Logo, para que um
medicamento venha a ser registrado e comercializado, é necessário que a Anvisa
avalie a documentação administrativa e técnico-científica relacionada à
qualidade, à segurança e à eficácia do medicamento. Para comprovação de
segurança e eficácia são apresentados no dossiê de registro, dentre outros
documentos, relatórios de estudos não clínicos (não realizados em seres
humanos) e relatórios de estudos clínicos fase I, II e III (realizados em seres
humanos). A análise desses dados é pautada na relação benefício/risco do
medicamento. São registrados os medicamentos cujos estudos comprovem que os
benefícios superam os riscos. Estes requisitos são obrigatórios e o não
cumprimento de especificações de qualidade consideradas imprescindíveis, pode
resultar em sérias implicações na saúde dos pacientes.
A Anvisa, através da Nota
Técnica nº56/2015 proferiu o seguinte parecer referente à fosfoetanolamina:
Não há na Anvisa qualquer registro concedido ou pedido de
registro para medicamentos com o principio ativo fosfoetanolamina.
A comercialização, bem como a exposição do produto
fosfoetanolamina, estaria em desacordo ao que prevê a Lei nº. 6.360/76, que em
seu artigo 12 assim dispõe: “...nenhum dos produtos de que trata esta Lei,
inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou
entregue ao consumo antes de registrado...”. Conforme já exposto, não há
nenhuma avaliação de qualidade, segurança e eficácia realizada pela Agência, portanto
Anvisa não tem como reconhecer, por absoluta falta de dados científicos, a suposta
eficácia da fosfoetanolamina para o tratamento do câncer, ou seja, os seus
efeitos são totalmente desconhecidos. Alertamos que todos os tipos de
tratamentos devem ser fundamentados em resultados de estudos cientificamente
comprovados.
É importante lembrar que o uso da fosfoetanolamina, pode
favorecer o abandono de tratamentos prescritos pela medicina tradicional, os
quais podem beneficiar ou curar a doença. A Anvisa adverte mais uma vez que o
uso dessa substância não tem eficácia e segurança sanitária, o uso desse
produto pode ser prejudicial ao paciente e não deve substituir os medicamentos
e procedimentos já estudados e com eficácia comprovada cientificamente.
O Instituto de Química de
São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP), proferiu o seguinte
parecer em relação à fosfoetanolamina (disponível em http://www5.iqsc.usp.br/esclarecimentos-a-sociedade/):
A substância fosfoetanolamina foi estudada de forma
independente pelo Prof. Dr. Gilberto Orivaldo Chierice, outrora ligado ao Grupo
de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros e já aposentado. Em vista da
necessidade de se observar o que dispõe a legislação federal (lei no 6.360, de
23/09/1976 e regulamentações) sobre drogas com a finalidade medicamentosa ou
sanitária, medicamentos, insumos farmacêuticos e seus correlatos, foi editada
em junho de 2014 a Portaria IQSC 1389/2014, que determina que tais tipos de
substâncias só poderão ser produzidas e distribuídas pelos pesquisadores do
IQSC mediante a prévia apresentação das devidas licenças e registros expedidos
pelos órgãos competentes determinados na legislação (Ministério da Saúde e
ANVISA). Essa Portaria apenas enfatiza a necessidade de cumprimento da
legislação federal e não estabelece exigências ou condições adicionais àquelas
já determinadas na lei.
Desde a edição da citada Portaria, o Grupo de Química
Analítica e Tecnologia de Polímeros não apresentou as licenças e registros
que permitam a produção da fosfoetanolamina para fins medicamentosos. Sendo
assim, a distribuição dessa substância fere a legislação federal.
Cabe ressaltar que o IQSC não dispõe de dados sobre a
eficácia da fosfoetanolamina no tratamento dos diferentes tipos de câncer em
seres humanos – até porque não temos conhecimento da existência de controle
clínico das pessoas que consumiram a substância – e não dispõe de médico para
orientar e prescrever a utilização da referida substância. Em caráter
excepcional, o IQSC está produzindo e fornecendo a fosfoetanolamina em
atendimento a demandas judiciais individuais. Ainda que a entrega seja
realizada por demanda judicial, ela não é acompanhada de bula ou informações
sobre eventuais contraindicações e efeitos colaterais.
O Instituto de Química de São Carlos lamenta quaisquer
inconvenientes causados às pessoas que pretendiam fazer uso da fosfoetanolamina
com finalidade medicamentosa. Porém o IQSC não pode se abster do cumprimento
da legislação brasileira e de cuidar para que os frutos das pesquisas aqui
realizadas cheguem à sociedade na forma de produtos comprovadamente seguros e
eficazes.
Para complementar a
fundamentação deste parecer, fez-se uma busca na principal base mundial de dados cientíicos (PubMed) com a intenção de
analisar o que já foi publicado sobre a fosfoetanolamina pelo autor Chierici.
Existem cinco publicações, que compreendem três estudos in vitro (placas de
laboratório) e dois em camundongos, a saber:
1.
Br J Cancer. 2013 Nov 26;109(11):2819-28. doi:
10.1038/bjc.2013.510. Epub 2013 Nov 7. Synthetic phosphoethanolamine has in
vitro and in vivo anti-leukemia effects.
2.
Biomed Pharmacother. 2013
Jul;67(6):481-7. doi: 10.1016/j.biopha.2013.01.012. Epub 2013 Feb 16. Synthetic
phosphoethanolamine induces cell cycle arrest and apoptosis in human breast
cancer MCF-7 cells through the mitochondrial pathway.
3.
PLoS One. 2013;8(3):e57937. doi:
10.1371/journal.pone.0057937. Epub 2013 Mar 14. Anti-angiogenic and
anti-metastatic activity of synthetic phosphoethanolamine.
4.
Biomed Pharmacother. 2012
Oct;66(7):541-8. doi: 10.1016/j.biopha.2012.04.008. Epub 2012 May 18. Synthetic
phosphoethanolamine a precursor of membrane phospholipids reduce tumor growth
in mice bearing melanoma B16-F10 and in vitro induce apoptosis and arrest in
G2/M phase.
5.
Anticancer Res. 2012
Jan;32(1):95-104. Anticancer effects of synthetic phosphoethanolamine on
Ehrlich ascites tumor: an experimental study.
A Medicina Baseada em Evidências
significa “uma medicina conscienciosa e judiciosa que utiliza as melhores
evidências de estudos clínicos para orientar na investigação e escolha do
tratamento quando houver incerteza”. O termo “conscienciosa” significa que se
aplicam evidências relevantes para cada caso; usa-se “judiciosa” para expressar
o julgamento dos riscos e benefícios dos testes diagnósticos e das alternativas
de tratamento de acordo com as condições clínicas particulares, individuais e,
principalmente, levando em consideração o próprio desejo do paciente. Para cada
recomendação, existe uma classificação baseada em uma escala (1a, 1b, 1c, 2a ,
2b, 2c, 3a, 3b, 4 e 5) onde 1a é a melhor evidência científica e 5 é a mais
fraca (Revista AMRIGS, Porto Alegre, 46 (1,2): 43-46, jan.-jun. 2002). No caso
em questão, a recomendação de fosfoetanolamina é nível 5, ou seja, a evidência é
fraca e insuficiente para ser recomendada aos pacientes.
Ressalta-se que, até o
momento, a justificativa para o uso de tal droga se baseia no relato de
pacientes e familiares, ansiosos por uma esperança contra uma doença que causa
sofrimento psicológico e físico, representa a morte para muitos, e no reconhecimento
profissional do investigador.
Faz-se necessário esclarecer
que a divulgada importância do pesquisador Gilberto Chierice no meio acadêmico,
na verdade, é baseada em uma publicação da revista Superinteressante, revista de
caráter comercial e sem vinculação com instituições científicas, que enumerou
100 cientistas de destaque no Brasil na sua edição número 100 em 1996. No trecho
da revista que se refere ao pesquisador lê-se: “Do óleo da mamona, Gilberto Chierice (SP, 1943) descobriu um polímero
(plástico) revolucionário na área médica. Pode ser empregado em próteses e na
recomposição de ossos. Serve como cimento, bactericida, fungicida e até para
substituir o gesso.”
Tal promissor achado, que
também foi divulgado sem estudos clínicos como no caso da fosfoetanolamina, posteriormente,
foi abandonado com a conclusão dos seguintes estudos mostrarem ser inferior ao
tratamento convencional:
J Biomater Appl. 2007 Jan;21(3):283-97. Epub 2006 Mar 16. Comparison
between polyurethanes containing castor oil (soft segment) and cancellous bone
autograft in the treatment of segmental bone defect induced in rabbits.
Bone regenerative medicine: classic options, novel strategies, and
future directions. J
Orthop Surg Res. 2014; 9: 18. Published online 2014 March 17. doi:
10.1186/1749-799X-9-18
Outro pesquisador da
fosfoetanolamina, o imunologista James Venturini da Univerisdade de São
Paulo, em sua pesquisa demonstrou que a substância fosfoetanolamina pode
modular o sistema imune contra o câncer e afetar a divisão celular, conforme
pode ser lido no artigo “The effect of phosphoethanolamine intake on mortality
and macrophage activity in mice with solid ehrlich tumors” (Arruda MSP et al. Braz. Arch. Biol. Technol. 54, 1203–1210; 2011). Contudo,
em entrevista a Revista Nature, em editorial que destaca o fato da justiça
brasileira decidir em relação a uma droga nunca testada, Venturini diz que,
para justificar o uso da fosfoetanolamina nas pessoas, a substância teria que ser rigorosamente
testada em uma série de estudos clínicos com voluntários humanos. "Eu
acredito fortemente que estudos clínicos randomizados, duplo-cego, são
necessários", diz ele. (http://www.nature.com/news/brazilian-courts-tussle-over-unproven-cancer-treatment-1.18864).
“Aqueles que não conhecem
a história estão fadados a repeti-la” (Santayana in The Life of Reason, 1905). Autorizar
a utilização de uma droga baseada na observação clínica, é retroceder um
século. A história da Medicina possuiu centenas de exemplos de terapêuticas consideradas
promissoras que foram abandonadas após a constatação da ineficácia e, em muitos
casos, de danos sérios aos pacientes. Esta é a razão para que o mundo inteiro
siga as regras de desenvolvimento de uma nova terapia (análise de laboratório
seguido de estudo clínico).
É necessário que a tomada
de decisões seja baseada em dados científicos sólidos, baseados em resultados de
segurança e eficácia. Assim, produzir e distribuir a fosfoetanolamina estaria
contrariando a ANVISA e a legislação
brasileira, além de ser cientificamente imprudente. A solução para esse impasse
é a realização de estudos clínicos, conforme já iniciado pelo Ministério da
Saúde.
Essa regulação pode ser vista
como um obstáculo à inovação, mas na realidade, é a via para alcançar a
inovação real e duradoura com segurança aos pacientes.
Marcelo Roberto Pereira Freitas, MD, PhD
Nenhum comentário:
Postar um comentário