quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Qual a evidência científica que apoia o uso da Fosfoetanolamina?



A busca incessante dos pacientes por tal medicamento está baseada em ciência ou na fé (cura milagrosa)?
Qual a evidência científica que apoia o uso da Fosfoetanolamina?

Será que realmente a cura do câncer está aí, mas uma conspiração mundial entre indústria farmacêutica, médicos e cientistas tem a intenção de esconder isso das pessoas??? Será que esses que participam dessa conspiração não tem parentes com câncer??? Lembro que o câncer é a segunda causa de morte, e em alguns países é a primeira. A chance de um homem desenvolver um câncer ao longo de sua vida é de 1/2 e de uma mulher é 1/3 (obs: estes dados incluem também tumores in situ).

Se tantas pessoas usaram este medicamento, por que os pesquisadores envolvidos nunca publicaram ao menos alguns relatos de casos ou série de casos para que se pudesse chegar a alguma conclusão, e não ficarmos dependentes de depoimentos de terceiros??? Será que é assim que se faz ciência???

Vamos aos fatos:

O registro de medicamentos no Brasil segue o disposto na Lei Federal nº. 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária.
A Lei nº. 5.991/1973 prescreve que medicamento é todo produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. Assim, qualquer produto que possuir alegações terapêuticas, deve ser considerado medicamento e precisa de registro para ser fabricado e comercializado.
Desde 1999, com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com competências estabelecidas por meio da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, essa atividade tornou-se responsabilidade da Agência.
Logo, para que um medicamento venha a ser registrado e comercializado, é necessário que a Anvisa avalie a documentação administrativa e técnico-científica relacionada à qualidade, à segurança e à eficácia do medicamento. Para comprovação de segurança e eficácia são apresentados no dossiê de registro, dentre outros documentos, relatórios de estudos não clínicos (não realizados em seres humanos) e relatórios de estudos clínicos fase I, II e III (realizados em seres humanos). A análise desses dados é pautada na relação benefício/risco do medicamento. São registrados os medicamentos cujos estudos comprovem que os benefícios superam os riscos. Estes requisitos são obrigatórios e o não cumprimento de especificações de qualidade consideradas imprescindíveis, pode resultar em sérias implicações na saúde dos pacientes.
A Anvisa, através da Nota Técnica nº56/2015 proferiu o seguinte parecer referente à fosfoetanolamina:
Não há na Anvisa qualquer registro concedido ou pedido de registro para medicamentos com o principio ativo fosfoetanolamina.
A comercialização, bem como a exposição do produto fosfoetanolamina, estaria em desacordo ao que prevê a Lei nº. 6.360/76, que em seu artigo 12 assim dispõe: “...nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado...”. Conforme já exposto, não há nenhuma avaliação de qualidade, segurança e eficácia realizada pela Agência, portanto Anvisa não tem como reconhecer, por absoluta falta de dados científicos, a suposta eficácia da fosfoetanolamina para o tratamento do câncer, ou seja, os seus efeitos são totalmente desconhecidos. Alertamos que todos os tipos de tratamentos devem ser fundamentados em resultados de estudos cientificamente comprovados.
É importante lembrar que o uso da fosfoetanolamina, pode favorecer o abandono de tratamentos prescritos pela medicina tradicional, os quais podem beneficiar ou curar a doença. A Anvisa adverte mais uma vez que o uso dessa substância não tem eficácia e segurança sanitária, o uso desse produto pode ser prejudicial ao paciente e não deve substituir os medicamentos e procedimentos já estudados e com eficácia comprovada cientificamente.
O Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP), proferiu o seguinte parecer em relação à fosfoetanolamina (disponível em http://www5.iqsc.usp.br/esclarecimentos-a-sociedade/):
A substância fosfoetanolamina foi estudada de forma independente pelo Prof. Dr. Gilberto Orivaldo Chierice, outrora ligado ao Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros e já aposentado. Em vista da necessidade de se observar o que dispõe a legislação federal (lei no 6.360, de 23/09/1976 e regulamentações) sobre drogas com a finalidade medicamentosa ou sanitária, medicamentos, insumos farmacêuticos e seus correlatos, foi editada em junho de 2014 a Portaria IQSC 1389/2014, que determina que tais tipos de substâncias só poderão ser produzidas e distribuídas pelos pesquisadores do IQSC mediante a prévia apresentação das devidas licenças e registros expedidos pelos órgãos competentes determinados na legislação (Ministério da Saúde e ANVISA). Essa Portaria apenas enfatiza a necessidade de cumprimento da legislação federal e não estabelece exigências ou condições adicionais àquelas já determinadas na lei.
Desde a edição da citada Portaria, o Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros não apresentou as licenças e registros que permitam a produção da fosfoetanolamina para fins medicamentosos. Sendo assim, a distribuição dessa substância fere a legislação federal.
Cabe ressaltar que o IQSC não dispõe de dados sobre a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento dos diferentes tipos de câncer em seres humanos – até porque não temos conhecimento da existência de controle clínico das pessoas que consumiram a substância – e não dispõe de médico para orientar e prescrever a utilização da referida substância. Em caráter excepcional, o IQSC está produzindo e fornecendo a fosfoetanolamina em atendimento a demandas judiciais individuais. Ainda que a entrega seja realizada por demanda judicial, ela não é acompanhada de bula ou informações sobre eventuais contraindicações e efeitos colaterais.
O Instituto de Química de São Carlos lamenta quaisquer inconvenientes causados às pessoas que pretendiam fazer uso da fosfoetanolamina com finalidade medicamentosa. Porém o IQSC não pode se abster do cumprimento da legislação brasileira e de cuidar para que os frutos das pesquisas aqui realizadas cheguem à sociedade na forma de produtos comprovadamente seguros e eficazes.
Para complementar a fundamentação deste parecer, fez-se uma busca na principal base mundial  de dados cientíicos (PubMed) com a intenção de analisar o que já foi publicado sobre a fosfoetanolamina pelo autor Chierici. Existem cinco publicações, que compreendem três estudos in vitro (placas de laboratório) e dois em camundongos, a saber:

1.        Br J Cancer. 2013 Nov 26;109(11):2819-28. doi: 10.1038/bjc.2013.510. Epub 2013 Nov 7. Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects.
2.        Biomed Pharmacother. 2013 Jul;67(6):481-7. doi: 10.1016/j.biopha.2013.01.012. Epub 2013 Feb 16. Synthetic phosphoethanolamine induces cell cycle arrest and apoptosis in human breast cancer MCF-7 cells through the mitochondrial pathway.
3.        PLoS One. 2013;8(3):e57937. doi: 10.1371/journal.pone.0057937. Epub 2013 Mar 14. Anti-angiogenic and anti-metastatic activity of synthetic phosphoethanolamine.
4.        Biomed Pharmacother. 2012 Oct;66(7):541-8. doi: 10.1016/j.biopha.2012.04.008. Epub 2012 May 18. Synthetic phosphoethanolamine a precursor of membrane phospholipids reduce tumor growth in mice bearing melanoma B16-F10 and in vitro induce apoptosis and arrest in G2/M phase.
5.        Anticancer Res. 2012 Jan;32(1):95-104. Anticancer effects of synthetic phosphoethanolamine on Ehrlich ascites tumor: an experimental study.

A Medicina Baseada em Evidências significa “uma medicina conscienciosa e judiciosa que utiliza as melhores evidências de estudos clínicos para orientar na investigação e escolha do tratamento quando houver incerteza”. O termo “conscienciosa” significa que se aplicam evidências relevantes para cada caso; usa-se “judiciosa” para expressar o julgamento dos riscos e benefícios dos testes diagnósticos e das alternativas de tratamento de acordo com as condições clínicas particulares, individuais e, principalmente, levando em consideração o próprio desejo do paciente. Para cada recomendação, existe uma classificação baseada em uma escala (1a, 1b, 1c, 2a , 2b, 2c, 3a, 3b, 4 e 5) onde 1a é a melhor evidência científica e 5 é a mais fraca (Revista AMRIGS, Porto Alegre, 46 (1,2): 43-46, jan.-jun. 2002). No caso em questão, a recomendação de fosfoetanolamina é nível 5, ou seja, a evidência é fraca e insuficiente para ser recomendada aos pacientes.
Ressalta-se que, até o momento, a justificativa para o uso de tal droga se baseia no relato de pacientes e familiares, ansiosos por uma esperança contra uma doença que causa sofrimento psicológico e físico, representa a morte para muitos, e no reconhecimento profissional do investigador.
Faz-se necessário esclarecer que a divulgada importância do pesquisador Gilberto Chierice no meio acadêmico, na verdade, é baseada em uma publicação da revista Superinteressante, revista de caráter comercial e sem vinculação com instituições científicas, que enumerou 100 cientistas de destaque no Brasil na sua edição número 100 em 1996. No trecho da revista que se refere ao pesquisador lê-se: “Do óleo da mamona, Gilberto Chierice (SP, 1943) descobriu um polímero (plástico) revolucionário na área médica. Pode ser empregado em próteses e na recomposição de ossos. Serve como cimento, bactericida, fungicida e até para substituir o gesso.”
Tal promissor achado, que também foi divulgado sem estudos clínicos como no caso da fosfoetanolamina, posteriormente, foi abandonado com a conclusão dos seguintes estudos mostrarem ser inferior ao tratamento convencional:
J Biomater Appl. 2007 Jan;21(3):283-97. Epub 2006 Mar 16. Comparison between polyurethanes containing castor oil (soft segment) and cancellous bone autograft in the treatment of segmental bone defect induced in rabbits.
Bone regenerative medicine: classic options, novel strategies, and future directions. J Orthop Surg Res. 2014; 9: 18. Published online 2014 March 17. doi: 10.1186/1749-799X-9-18
                Outro pesquisador da fosfoetanolamina, o imunologista James Venturini da Univerisdade de São Paulo, em sua pesquisa demonstrou que a substância fosfoetanolamina pode modular o sistema imune contra o câncer e afetar a divisão celular, conforme pode ser lido no artigo “The effect of phosphoethanolamine intake on mortality and macrophage activity in mice with solid ehrlich tumors”  (Arruda MSP et al. Braz. Arch. Biol. Technol. 54, 1203–1210; 2011). Contudo, em entrevista a Revista Nature, em editorial que destaca o fato da justiça brasileira decidir em relação a uma droga nunca testada, Venturini diz que, para justificar o uso da fosfoetanolamina nas pessoas,  a substância teria que ser rigorosamente testada em uma série de estudos clínicos com voluntários humanos. "Eu acredito fortemente que estudos clínicos randomizados, duplo-cego, são necessários", diz ele.  (http://www.nature.com/news/brazilian-courts-tussle-over-unproven-cancer-treatment-1.18864).
“Aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la” (Santayana in The Life of Reason, 1905). Autorizar a utilização de uma droga baseada na observação clínica, é retroceder um século. A história da Medicina possuiu centenas de exemplos de terapêuticas consideradas promissoras que foram abandonadas após a constatação da ineficácia e, em muitos casos, de danos sérios aos pacientes. Esta é a razão para que o mundo inteiro siga as regras de desenvolvimento de uma nova terapia (análise de laboratório seguido de estudo clínico).
É necessário que a tomada de decisões seja baseada em dados científicos sólidos, baseados em resultados de segurança e eficácia. Assim, produzir e distribuir a fosfoetanolamina estaria contrariando a  ANVISA e a legislação brasileira, além de ser cientificamente imprudente. A solução para esse impasse é a realização de estudos clínicos, conforme já iniciado pelo Ministério da Saúde.
Essa regulação pode ser vista como um obstáculo à inovação, mas na realidade, é a via para alcançar a inovação real e duradoura com segurança aos pacientes.


Marcelo Roberto Pereira Freitas, MD, PhD






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